sexta-feira, 18 de março de 2011

Memórias de Cozinhas



Tenho memórias de muitas cozinhas, tanto da que era na casa onde morei em Blumenau, na infância e juventude, quanto a da minha casa em Pomerode, e claro, das outras das muitas casas que morei depois que saí da casa paterna. Na segunda casa que morei em Salvador, casa de Marinha, a cozinha era grande e arejada, de azulejos brancos e piso de um tom ocre. Era a cozinha da minha nova vida. Onde fazia as mamadeiras e papinhas da Laura, onde deixava cravos espalhados pela pia de inox para espantar as formigas, onde preparei a primeira ceia de Natal distante da minha terra e da familia, onde ostentei com todo orgulho a minha primeira geladeira duplex Brastemp.

Ali uma vez eu cozinhei feijão numa das centenas de infrutíferas tentativas de fazer um feijão bom. Deixei a vasilha com os grãos de feijão de molho em cima da mesa e a Laura foi lá e virou tudo no chão cor de ferrugem. Era tarde da noite, eu deixava o feijão de molho para estar macio no dia seguinte e a guria acordada aprontando todas, um disco do Belchior tocando e eu secando o chão, louca da vida e rindo ao mesmo tempo, porque as crianças às vezes fazem a gente rir nas horas mais insólitas.

Era uma casa de 3 quartos, quase uma de frente pra outra, naquela vila militar. Tinha uma varanda com rede e um coqueiro bem em frente prá dar aquela sombrinha. A janela da minha cozinha era alta, não via a cozinha do vizinho, mas de lá vinham aromas de comidas cariocas, já que ali morava um casal de Niterói. Feijoadas, peixadas, tudo ao som do bom e velho pagode do grupo Fundo de Quintal. Som de saudades prá eles, novidade prá mim, já que catarinenses pouco ouviam pagode no seu dia-a-dia... Enquanto eu cozinhava minhas gororobas destinadas ao lixo, as papinhas da Laura ou lavava as louças da pia, ouvia a vizinha bradar lá do outro lado, da outra casa, que não queria mais morar ali, em Salvador. Queria voltar para o Rio de Janeiro, para perto da família, prá perto da vida que havia deixado de lado para acompanhar a carreira nômade do marido, na época marujo, hoje Sub-Oficial da Marinha. E era tanta mágoa destilada, tanto lamentar pela sorte das crianças, coitadas, que de 2 em 2 anos tinham que trocar de escola, de amigos, de casa, de quarto.. E havia os filhos que tinham naturalidades diversas, pois que nasciam vez em um estado, vez em outro...Nem as belezas da Bahia conseguiam acalmar a dor da minha vizinha por estar ali, num estado estranho para ela (que diria eu...), de pessoas estranhas, de escolas ensinando ainda um alfabeto do tempo do império, um tal de fê-mê-guê, que tanto eu quanto ela não entendíamos...Da minha cozinha ouvia também suas criança correndo no meu quintal, alheias à todo esse "sofrimento" de sua mãe, brincando no pé de jaca, atrás dos saguis que vinham ali pertinho a desfilar o ar de sua graça, já que não existiam cercas ou muros que separavam umas casas das outras. Até hoje não sei se isso era bom ou ruim, só sei que às vezes me incomodavam as algazarras excessivas que faziam. Mas eram crianças...

Sei que amei aquela cozinha que presenciou os primeiros passinhos da Laura, testemunhou meus primeiros passos no rumo que tomei na vida, de onde via todos os dias meu marido chegando do trabalho, dos fins de tarde com panelas fumegando no preparo da janta...cenas de uma família reunida em torno de uma promessa de futuro, que bem poderia ter se consolidado naquela casa, naquela cozinha, junto àquela janela que trazia por vezes, pássaros perdidos, cheiro de jaca, lamentos, som de chuva, os sons do mundo.

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sexta-feira, 18 de março de 2011

Memórias de Cozinhas



Tenho memórias de muitas cozinhas, tanto da que era na casa onde morei em Blumenau, na infância e juventude, quanto a da minha casa em Pomerode, e claro, das outras das muitas casas que morei depois que saí da casa paterna. Na segunda casa que morei em Salvador, casa de Marinha, a cozinha era grande e arejada, de azulejos brancos e piso de um tom ocre. Era a cozinha da minha nova vida. Onde fazia as mamadeiras e papinhas da Laura, onde deixava cravos espalhados pela pia de inox para espantar as formigas, onde preparei a primeira ceia de Natal distante da minha terra e da familia, onde ostentei com todo orgulho a minha primeira geladeira duplex Brastemp.

Ali uma vez eu cozinhei feijão numa das centenas de infrutíferas tentativas de fazer um feijão bom. Deixei a vasilha com os grãos de feijão de molho em cima da mesa e a Laura foi lá e virou tudo no chão cor de ferrugem. Era tarde da noite, eu deixava o feijão de molho para estar macio no dia seguinte e a guria acordada aprontando todas, um disco do Belchior tocando e eu secando o chão, louca da vida e rindo ao mesmo tempo, porque as crianças às vezes fazem a gente rir nas horas mais insólitas.

Era uma casa de 3 quartos, quase uma de frente pra outra, naquela vila militar. Tinha uma varanda com rede e um coqueiro bem em frente prá dar aquela sombrinha. A janela da minha cozinha era alta, não via a cozinha do vizinho, mas de lá vinham aromas de comidas cariocas, já que ali morava um casal de Niterói. Feijoadas, peixadas, tudo ao som do bom e velho pagode do grupo Fundo de Quintal. Som de saudades prá eles, novidade prá mim, já que catarinenses pouco ouviam pagode no seu dia-a-dia... Enquanto eu cozinhava minhas gororobas destinadas ao lixo, as papinhas da Laura ou lavava as louças da pia, ouvia a vizinha bradar lá do outro lado, da outra casa, que não queria mais morar ali, em Salvador. Queria voltar para o Rio de Janeiro, para perto da família, prá perto da vida que havia deixado de lado para acompanhar a carreira nômade do marido, na época marujo, hoje Sub-Oficial da Marinha. E era tanta mágoa destilada, tanto lamentar pela sorte das crianças, coitadas, que de 2 em 2 anos tinham que trocar de escola, de amigos, de casa, de quarto.. E havia os filhos que tinham naturalidades diversas, pois que nasciam vez em um estado, vez em outro...Nem as belezas da Bahia conseguiam acalmar a dor da minha vizinha por estar ali, num estado estranho para ela (que diria eu...), de pessoas estranhas, de escolas ensinando ainda um alfabeto do tempo do império, um tal de fê-mê-guê, que tanto eu quanto ela não entendíamos...Da minha cozinha ouvia também suas criança correndo no meu quintal, alheias à todo esse "sofrimento" de sua mãe, brincando no pé de jaca, atrás dos saguis que vinham ali pertinho a desfilar o ar de sua graça, já que não existiam cercas ou muros que separavam umas casas das outras. Até hoje não sei se isso era bom ou ruim, só sei que às vezes me incomodavam as algazarras excessivas que faziam. Mas eram crianças...

Sei que amei aquela cozinha que presenciou os primeiros passinhos da Laura, testemunhou meus primeiros passos no rumo que tomei na vida, de onde via todos os dias meu marido chegando do trabalho, dos fins de tarde com panelas fumegando no preparo da janta...cenas de uma família reunida em torno de uma promessa de futuro, que bem poderia ter se consolidado naquela casa, naquela cozinha, junto àquela janela que trazia por vezes, pássaros perdidos, cheiro de jaca, lamentos, som de chuva, os sons do mundo.

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